segunda-feira, 2 de junho de 2008

“Eles passarão. (...)

Ela confere ansiosa o relógio pensando como era incomum aquele atraso de meia hora.Contrariamente ao que tentava transparecer, desejava que, por aquela porta, ele entrasse, puxasse a cadeira ao lado para se sentar e fizesse, ali, os gestos que lhe presenteava quando estavam seguros. No quadro, mais uma apresentação tosca de algo tosco por alguém não surpreendentemente mais tosco ainda; uma sobreposição de conhecimento que, sem mais, a irritava, assim como essa obrigatoriedade de ficar quieta, inerte, apática e semimorta, a espera da grandiosa luz do saber, que por mágica, certamente, adentraria sua caixa craniana pensante sem menor esforço. Durante esse compenetrante movimento da luz, ele entrou com passos firmes, apressados e imensamente vermelhos – diziam roxo, mas ele entrou vermelho; oscilando em fazê-la vizinhança ou não. “Meros sorrisos tímidos de companheragem”, pensava ela, enquanto, já há alguns quarto de hora sem voltar o rosto para a figura dele, resolveu mover-se totalmente em direção a ele. Bobagem qualquer que chamou a atenção de outras pessoas para a micro-explicação que, a princípio, era somente para ele. Para ele... Para ele que, naquele momento, voltou toda a sua máster-explicação filosófica para outros. Palavras e mais palavras. Como eram imensos aqueles verbos cambaleantes na boca daquele homem. Articulava bem as idéias, expunha-nas sem medo do quão nocivas poderiam ser. No meio daquela explicação, ela o desenhava em mente: selvagem, como qualquer animal acuado. Essa seria a caracterização para ele, um ser-animalesco-oralizado. Desenhou novamente uma imagem para ele, agora, minguante. Ele sumia lentamente da imaginação, via-lhe a boca mover, dela saiam a essência de muita coisa, que não ele, propriamente; e isso fazia que ele evaporasse do pensamento, mesmo estando ali, frente a frente. Como um soluço ou quem sabe a penetração da luz, ela soube da verdade: mesmo entre os poemas e arames no local seguro, na vida real, existiria sempre uma distância infinita entre eles. Os poemas eram camuflantes da realidade, ali, descoberta por ela e que cada dia mais a libertava (dela mesma e deles): eles eram apenas desafio um para o outro, nada mais.

(...) Eu passarinho.”